sábado, 27 de dezembro de 2008

Posso escrever.


Posso escrever sobre qualquer coisa.
Posso escrever sobre este quarto e o exato efeito que cada móvel tem em mim. Posso escrever sobre o seu aroma, suas cores, sobre o conforto que me traz.
Posso escrever sobre a minha pele, sobre como me sinto ao portá-la. Posso escrever sobre minhas roupas e o agradável abraçar do tecido que envolve meu corpo.
Posso também escrever sobre essa dor funda que me assola quando encontro-me sozinha, entregue à minha própria companhia.
Posso escrever sobre o desamparo que sai arrastado do meio deste vazio existente em mim. Posso também escrever sobre a impossibilidade de preenchê-lo. Posso escrever sobre o eco que produzo dentro dele.
Posso escrever sobre a minha meninice, as noites cintilantes na casa de praia, as estrelas cadentes cruzando nossas cabeças em sintonia perfeita com os sonhos que moravam dentro de mim, dentro de nós.
Posso escrever sobre as minhas cores, os meus perfumes, os meus sinais, as minhas caminhadas, o meu cansaço, os cheiros que me levam, que me desfazem, que me diluem.
Posso escrever sobre o seu beijo, o seu toque, o peso do seu corpo, a pressão na ponta dos seus dedos, a pressão na ponta de meus lábios, a respiração forte, o calor saindo do teu corpo e entrando no meu.
Posso escrever sobre o meu desejo.
Posso escrever sobre o meu amor, sobre a minha incondicionalidade.
Posso escrever sobre os dias de sol que me aquecem, sobre os dias de chuva que me confortam, sobre as folhas secas que caem perante mim anunciando a próxima estação.
Só posso escrever sobre o que habita em mim. Tento dissolver a minha própria teia, me transformar em palavras e deixá-las soltas por aí. Assim o faço na esperança que tais palavras possam ser sopradas ao pé do teu ouvido e talvez você encontre-se nelas. Talvez aquilo que carrego em mim tu também carrega em ti e nós dois não estaremos mais sozinhos.
Posso escrever porque não aprecio estar só. Posso escrever porque busco companhia.
 
Quero me escrever em ti. E quero que você se leia em mim.

Clarissa Simas

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

A cidade das luzes que cegam


Para além dos muros, há uma cidade. Do alto, posso ver o horizonte iluminado por pequenas luzes como vaga-lumes imóveis que se doam sem saber. Os ruídos soam tão graves e distorcidos que me desvaneço nos meus pensamentos por alguns instantes. Há algo de tão belo na ansiedade que desejo ser inteira urgência e incerteza por mais tempo, mas os momentos são breves e eu sou tantas, que deixo escapar por entre os dedos a estreiteza e me percebo transbordar para além dos meus limites.

Ao longe, seus olhos de turmalina negra se movem inquietos e eu me sinto toda feita de marfim e pétalas de rosa. Seu corpo estruturado recostado à beira da escuridão e eu, à beira da falta de ar. Quis lhe dizer que há uma força intensa na entrega, que perder-se é uma aventura desmedida, mas essa é uma informação sigilosa que só o tempo pode contar. Me calo, me movo, me preencho e me coloco a sua frente. Me satisfaz o seu toque breve, seu sorriso extenso, seu aroma lilás. Eu me exponho e me descontrolo porque perder o controle é um ato fugaz e estimulante e me cansa ser completamente límpida e moderada. Quis desprender os seus gestos, desatar as suas frases e no entanto você é indissolúvel e tem tudo o que lhe pertence ter. A manhã se arremessa sobre a noite com velocidade e você não parece ter pressa. Será que haverá tempo suficiente para viver o inadiável?

Juliana Varaschin

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Julieta Venegas & Marisa Monte



Há algum tempo sou fã dessa mexicana e essa parceria com a Marisa está linda (sem contar que a letra da música é perfeita!).

Juliana

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Le dernier souffle



Acordei me sentindo mais leve. Meu coração que bate do lado direito do peito amanheceu mais sereno, enquanto aquele que está do lado esquerdo batia no seu ritmo normal. Olhei para a porta que por tantas vezes você entrou e vi atravessar a luz límpida da solidão. Vagarosamente, movi meu corpo pelo espaço vazio da nossa cama como se flutuasse, porque às vezes estar só é ter asas e poder voar. Lembrei do som distante da tua voz, das tuas palavras ásperas e foi como se meus ouvidos tilintassem como aquele sino no alto daquela torre daquela igreja que vejo daqui desta janela. Coloquei lençóis novos sobre a cama, tirei as roupas que traziam os teus cheiros e tomei um banho com água morna. Deixei que a água lavasse meu corpo que agora está mais leve por não precisar mais carregar esse amor. Por que você não disse antes que eu não estava nos teus planos, que nosso amor não era primaz? Teria evitado que eu carregasse sobre os ombros um mundo de falsas esperanças e de desejos e talvez eu pudesse ter-me sentido mais leve há muito tempo. Será que você nunca percebeu a beleza que existe em saber-se inteiro e sentir-se mais completo quando se está a dois? Que estar a dois é um exercício de dar-se mais para conhecer-se mais? Queria poder-te dizer que fui tão verdadeira, tão inteira, tão tua, tão eu, tão nós, que esperei aquela tua vontade de estarmos juntos surgir, mas que ela nunca surgiu e que por isso me cansei de esperar, que me doei por completo, que fui o melhor e o pior de mim, que te amei, que errei, que me entreguei, que me recolhi, que pensei e repensei, que senti, que falei, que disse coisas vãs, que tentei fazer sentido, mas você não sabe me escutar porque está muito longe, porque já te tirei da minha vida, do meu convívio. Queria dizer tudo isso numa única frase, sem ponto, sem vírgula, sem ponto-e-vírgula, até perder o ar e depois sair, deixando para trás todas as lembranças e sensações. Acho que no fundo sempre esperei por esta manhã, porque me sinto nova, renovada, como se me visse pela primeira vez. Percebo que há algo de muito diferente em mim: sim, eu possuo dois corações. O da esquerda bate por mim e o da direita, agora também.

Juliana Varaschin

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

O amor comeu


O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.




O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.




O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.




O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.




Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.




O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.




O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.




O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.




O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.




O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.




O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

Não é meu o texto, mas gostaria muito de tê-lo escrito.
Clari

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Guardar

Vou fazendo a mala. Mas em que ordem por tudo? Blusas brancas com blusas brancas, coloridas separadas, os jeans antigos por baixo, os novos por cima. Sem que eu perceba, as emoções e lembranças também são preparadas para a longa viagem.

As meias vão no bolso pequeno, junto com as pequenas alegrias. Aquela de se lamber um sorvete e caminhar pela rua cheia de gente na primeira tarde de primavera. O jeans novo vai no mesmo lugar das boas experiências, junto com tudo aquilo que caiu bem. O jeans velho vai por baixo, assim como tudo aquilo de bom que já existia e que, como o jeans, só se torna mais confortável com o uso. O biquines vão por cima, já que serão usados prontamente - junto com a saudade, serão os primeiro a saírem da mala. As bolsas vão ao lado, carregando o indispensável. Adendo: uma consequência de se carregar o indispensável é muitas vezes carregar o que é absolutamente dispensável - temos reconhecida dificuldade em distinguir quem é quem. Esquininhas da nossa mente também carregam hábitos e emoções que não precisamos mais. Esquininhas estas que, assim como bolsas, também trazem o fundamental. Os cachecóis e roupas de frio vão em uma mala separada, onde também ficará a lembrança de um inverno frio e doloroso. Vem também uma ferida já curada, que deixou uma elegante cicatriz. Com os sapatos vem as longas caminhadas de reflexão e de anseio. Com os sapatos altos vem as risadas, as noites em claro. Do lado dos livros foi empacotada a sabedoria, pois ambos são a perfeita companhia. Com as peças íntimas vêm os mais íntimos desejos, aqueles que também só são mostrados para pessoas escolhidas à dedo.

E tudo se mistura, se bagunça, embirra e não quer caber. São como criancinhas de jardim; requer-se muita paciência e atenção para conseguir organiza-las. Assim também com aquilo que se sente.

E a mala brinca de ser um coração: grande, amplo, sempre querendo abarcar tudo e todos; quer que tudo caiba dentro dela. Às vezes sujeita-se a carregar um peso tremendo, maior do que ela própria aguenta. E sorri um riso arreganhado ao se abrir e deixar tudo sair, no fim da viagem. Por alguma razão isso se assemelha muito a um coração.

Uma mudança obriga a carregar um peso enorme. E em casa é onde se esvazia a mala e o coração. É onde os dois se tornam leves de novo, o porto seguro pra guardar tanta bagagem. Seja onde ou qual for essa casa, é onde devemos voltar de vez em quando. Só pra esvaziar um pouco, sabe? Ter bagagem é muito bom, só que as vezes um pouco da bagagem precisa ser deixada pra trás. É bom rever se tudo aquilo é essencial mesmo. Lembre-se que aquilo que não é essencial se disfarça muito bem, afinal ninguém gosta de ser deixado pra trás. Os nossos corações, com essa mania de mala, querem sempre carregar o máximo possível. Voltar pra casa é bom por isso. Para nos livrarmos do peso. Bom, pelo menos é o que eu acho. Se o seu coração não se assemelha nem um pouco a uma mala, melhor pra você. Arrumar mala de viagem sempre dá um trabalhão.

Clari

sábado, 6 de dezembro de 2008

Última página ou lembranças de alguém que se foi


Caminhávamos por entre os prédios seguindo, sem perceber, um destino que já havia sido traçado por outros amantes. Seus passos ajustados e constantes nos conduziam e meus olhos úmidos e sôfregos questionavam: há algo pelo qual valha à pena correr? Olhei através do ar espesso e vi seus pés fincarem o chão, percebi que a cada passo largo seu, você se distanciava, criando um espaço entre nós no qual cabem muitas incertezas.

Quis pedir para você esperar, mas havia algo mais denso que me encerrava os pulmões e impedia que os sons vibrassem dentro de mim. Continuei a te seguir, me esforcei para te acompanhar, apertei o passo, perdi o fôlego e o rumo. Vi você se distanciar como um balão solto ao vento, meus olhos se encheram da visão turva de um vulto que sumia na bruma clara da última manhã dos nossos dias.

Por isso fico aqui, escrevendo cartas para quem não conheço, tendo lembranças do que jamais vivi, criando finais felizes e dias de sol. Por isso tento conviver com o afastamento, mas nem sempre é uma tarefa fácil porque hoje cedo o silêncio se transformou em algo muito parecido com dor. Tentei preenche-lo com lembranças ou com aquilo que existe ou com o que eu suponho existir, no entanto só possuo a imagem de algo que não conheço. É por isso que estou aqui comigo e mais ninguém, porque só posso conviver com aquilo que é real para mim.

Juliana Varaschin

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Palavras



Caminhava com urgência, como se tivesse pressa em saber o que aconteceria depois daquela esquina. Trazia nos bolsos uma porção de palavras. No dia anterior, tinha memorizado várias rimas pobres e frases sem efeito para te convencer e as guardei junto com o teu bilhete de despedida. Minhas pernas se moviam com destreza e sentia que meus pés mal tocavam o chão. A passos largos, caminhava ao teu encontro porque meus sentimentos são inadiáveis, sou composta de nuvem e vento e quando tudo se confunde, sou tempestade.

Tua sombra se precipitou sobre os meus pés e pude sentir o cheiro de fruta madura. Meus olhos viram a tua beleza que se lançava para fora de ti e foi inevitável não pensar nas tuas últimas palavras impressas num pedaço de papel amassado em cima da mesa da sala.

“Parto cedo por medo de nunca mais poder partir.
Deixo apenas meus pensamentos.
L.”

Queria poder explicar que as tuas palavras não fazem sentido algum, que tua partida é precipitada, que teus pecados me fazem falta, que os vizinhos não suportam mais meu olhar consternado, que não consigo dormir sem antes pensar no peso do teu corpo sobre o meu, que as flores lá de casa murcharam, que o sol não brilhou mais desde que o inverno começou, que nunca mais ouvi Tom, que teci um cobertor com as minhas lembranças, que meus dedos nunca mais tocaram nas teclas do piano, que queimei todos os postais que tu me deste no último ano.

Eu queria uma frase feita, um lugar-comum, um cliché. Procurei nos bolsos algo que demonstrasse meu sentimento mais profundo, mas não havia nada, só encontrei o silêncio e foi isso que eu pude te entregar. Quando estendi os braços, tu havias construído um muro para nos separar. Tu havias roubado as minhas palavras e as colocado no muro, deixando um vazio indizível, mas plenamente compreensível.

Juliana Varaschin

Foto: PriRamos (http://www.flickr.com/photos/prisousa/sets/)