domingo, 26 de abril de 2009

looped in the loops of her hair.


Cabelos cacheados sempre foram um mistério muito grande para mim. Sinto uma estranha atração por eles.  Talvez por causa dos cabelos encaracolados do meu pai, onde tive as minhas primeiras lições. Até hoje eu retorno para eles quando alguma dúvida surge.


Ou talvez porque sempre encontro boa companhia nos cachos da minha irmãzinha. Eles adoram brilhar e se exibir sob o sol. Olhando para aqueles anéis dourados, meus lábios se ocupam de um sorriso despreocupado - efeito colateral do meu encanto e servidão à sua beleza.

No emaranhado de cachos dele eu já me perdi muitas vezes. Eu já quis correr, já quis fugir, já quis não querer tanto assim. Eu já escorreguei tantas vezes por aquele cabelo cacheado que já nem me lembro mais quantas voltas dei. Me deixei enfeitiçar tantas vezes... tantas vezes quantos os beijinhos que eu quis dar.

Tenho a impressão que os cabelos bem lisos da minha mãe e da minha avó me apresentaram o amor incondicional. Porém foi só quando meus olhos pousaram sob os minúsculos cachinhos da priminha recém-nascida que eu entendi o que é delicadeza. Sem dúvida, naquela cabecinha jazia a matéria prima de toda beleza  do mundo.

Cabelos lisos sempre me trazem bons conselhos, boas opiniões, raciocínios  lógicos. Com os cabelos lisos aprendi a forma certa. Com aneizinhos doces e curtinhos aprendi  que, no fundo,  há mais verdade no movimento do que na forma certa.

Eu particularmente tenho cabelos lisos. Muito lisos. Não me leve a mal, mas eu sempre gostei bastante de ser assim. Porém creio que por causa disso sou vítima do encantamento de cabelos cacheados. Estou constantemente a procura deles para iluminar o meu dia. Mal sabem vocês quantos mistérios estão guardados naquelas simples voltinhas. Minha vocação é estar a procura de cachos perdidos por aí. A retidão de espírito  dos meus cabelos lisos buscam o anelado da invasão, da desconstrução. Não há novo sem quebra - e o que é o cacho senão a quebra de uma linha reta?

Assim, vou me enrolando junto com seus fios e me deixo levar. De longe, observo minha irmã andar sob o sol. Eu sei que existe muita beleza no mundo. Tenho certeza disso. Porém nada me encanta tanto como os cachinhos dourados dela brilhando em sintonia com seus olhinhos azuis, refletindo a luz da manhã.


Clarissa Simas

domingo, 5 de abril de 2009

Velar



Minha história cabe numa dúzia de caixas rotuladas e lacradas. A maior é a dos livros e também é a mais pesada. As fotos, eu guardei junto com os CDs e com os incensos. Os documentos velhos foram para o lixo e os que podem me fazer falta estão ordenados por datas, envelopados e etiquetados. As roupas de inverno estão separadas das de verão, os cobertores e travesseiros, em caixas grandes e as pulseiras, colares e anéis, em caixas pequenas.

Tirar o pó das prateleiras vazias é o mesmo que velar um corpo sem vida - é uma despedida. Mas não é uma despedida da prateleira, do armário, do sofá; é uma despedida das histórias, das risadas, das lágrimas, dos medos, dos desejos que vivi em cada pedaço desse lugar, que é a representação mais pura e clara de quem eu sou. É quase uma despedida minha de mim mesma. Penso que ao fechar a porta dessa casa, poderia lacrá-la e colocar uma placa: ‘aqui jazem histórias de alguém que viveu enquanto havia o que viver’.

E é por isso que não é uma despedida com pesar e tristeza, porque tudo o que havia para ser feito, foi dito, vivido e guardado na memória. É um adeus com os olhos num novo horizonte completamente aberto e amplo. Fico imaginando onde essas caixas serão novamente abertas, em quais estantes meus livros habitarão, o pôr-do-sol de qual cidade meus olhos contemplarão, com quem dividirei meus DVDs, meu sofá, minha cama. Que esse novo ciclo se inicie.

Juliana Varaschin

Foto: Tela de Tamara de Lempicka, 'Jeune Fille en Vert', minha mais nova paixão.