terça-feira, 18 de novembro de 2008

Expressão


“Na manhã em que me levantei para começar este livro tossi. Algo estava a sair-me da garganta, a estrangular-me. Rasguei o cordão que o retinha e arranquei-o. Voltei para a cama e disse: Acabo de cuspir o coração.”

No papel manchado de sangue, ficaram as palavras que precisava ter dito e não disse. Palavras estampadas são para sempre, palavras soltas no ar duram apenas o tempo da reprodução do seu som. Transformei minha angústia em palavras e as fixei numa folha imaculada. Escancarei meu peito e sentimentos, sujei o papel com minhas falhas e imperfeições porque não quero mais brincar de ser perfeita, quero ser eu mesma e serei.

Poucas vezes me olho no espelho. Digo que é preguiça, que é falta de vaidade, que sou assim e ponto, mas sei que no fundo é receio. Já me acostumei com minhas olheiras, as marcas no meu rosto, meus cabelos desajeitados, as desproporções do meu corpo, meus dedos longos e meus tornozelos. Essas coisas da pele para fora, conheço-as bem. Tenho medo de me olhar tão fixamente a ponto de ver minha imagem se desdobrar e mostrar o que tenho por dentro.

Lembro da noite que chorei deitada no chão, assumindo minha condição de despropositada, de quem não sabe para onde vai, nem quando vai. Chorei por horas, talvez por dias. Quis algo que me salvasse, mas sabia que teria que deixar cair gota a gota todo o meu veneno para depois experimentar o gosto da redenção. Nessa noite, os espelhos foram desnecessários, pois as lágrimas refletiam as minhas fraquezas e eu me fiz menos carne. Diluí meus pensamentos, misturei com as tintas e escrevi.

Juliana Varaschin

No início, citação de um trecho de “A Casa do Incesto” de Anaïs Nin, que define muito bem a sensação que tenho quando escrevo.
Na foto, Clarice Lispector, que usava melhor do que ninguém o coração para escrever.

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